sábado, 23 de dezembro de 2017

A Catastrófica Aranha [Edward Feser]

A Catastrófica Aranha

A Catastrófica Aranha

Immanuel Kant, este grande destruidor no reino do pensamento, excedeu Maximilian Robespierre em terrorismo

  • Heinrich Heine, Concerning the History of Religion and Philosophy in Germany

Kant ... Aquela aranha catastrófica ...

  • Friedrich Nietzsche, The Antichrist

Tomada como um todo, a influência kantiana no cristianismo moderno é tão profunda e pervasiva que eu creio que faz sentido falarmos de três grandes períodos da teologia cristã, cada um associado a um filósofo dominante. (1) O primeiro período é o cristianismo platônico ou neoplatônico dos primeiros pais da igreja; (2) O segundo é o cristianismo aristotélico da teologia escolástica ou medieval; (3) E o terceiro é o cristianismo kantiano da era moderna ...

Da forma que eu vejo, a validade da nova síntese depende inteiramente de uma questão: a capacidade de controlar Kant, de manter 'Kant na caixinha', por assim dizer. Afinal o kantismo puro é incompatível com o cristianismo ... Se uma concepção kantiana de autonomia prevalece, então Deus torna-se servo de um humanismo moderno e a síntese é inválida.

  • Robert P. Kraynak, Christian Faith and Modern Democracy

Como notei no meu post mais recente sobre Deus e obrigação [L01], de um ponto de vista aristotélico-tomista, Deus só pode desejar de acordo com a razão e portanto, dado que a razão é por sua natureza direcionada para o bem, ele só pode desejar o que é bom. Mas Ele o faz não em obediência a uma lei fora de Si Mesmo, mas de acordo com Sua própria natureza. Afinal Ele não "tem" racionalidade ou bondade; em vez disso, Ele é Seu infinito Intelecto, Ele é a perfeita Bondade. Para usar a linguagem central à ética de Kant, você pode dizer que Ele é "autônomo", que ele é um "auto-legislador" -- que Ele não segue lei salvo o que é ditado pela Sua própria natureza racional.

Mas, é claro, o próprio Kant aplica este conceito a nós. Nós devemos, em sua visão, sermos "autônomos" se é para servos verdadeiramente livres -- não sem-lei, para não ter dúvidas, mas também não "heterônomos", não limitados por uma lei externa a nós. Em vez disso, devemos ser "auto-legisladores", atrelados apelas por uma lei que de alguma forma é de nosso próprio entendimento. Kant também famosamente descreve-nos como "fins em nós mesmos", e afirma que uma verdadeira comunidade moral é aquela na qual os membros lutam para criar um "reino de fins", uma ordem na qual todos são tratados como fins auto-legisladores em si mesmos.

Estas ideias têm sido enormemente influentes. Elas formaram o liberalismo igualitário de John Rawls, o libertarianismo de Robert Nozick, e até mesmo o conservadorismo de Roger Scruton. Como Kraynak enfatiza, elas também têm permeado o pensamento católico e protestante atual. Pessoas modernas de todas as vertentes políticas e religiosas têm passado a ver "respeito pelas pessoas", "direitos humanos", "dignidade humana", "liberdade" e coisas do gênero -- em vez de, digamos, submissão à lei natural ou à vontade de Deus - como categorias fundamentais em termos das quais abordar questões morais e políticas. Até aqui, "todos somos kantianos agora".

Mas de um ponto de vista cristão tradicional, e de um ponto de vista tomista, existe algo mais que um tanto blasfemo nisso tudo. Para a teoria clássica da lei natural - o tipo que embasa a moralidade na natureza humana como entendida nos termos de uma metafísica essencialista clássica (platônica, aristotélica ou escolástica) - é difícil ver como seres humanos podem inteligivelmente ser descritos como "auto-legisladores" ou "autônomos". Em nenhum sentido somos a fonte da natureza que determina nossos fins, incluindo o fim da própria razão; somente Deus é assim. Portanto a natureza, e ultimamente Deus - em vez da razão individual do agente moral - são o que embasa o conteúdo e força obrigatória da lei moral. Como diz Aquino:

Desta forma o próprio Deus é a medida de todas as coisas ... Portanto Seu intelecto é a medida de todo o conhecimento; e, para falar mais ao ponto, Sua boa vontade, de toda boa vontade. Toda boa vontade é boa em razão de ser voltada para a divina boa vontade. De acordo, desde que todos são obrigados a ter uma boa vontade, ele é similarmente obrigado a ter uma vontade conformada à divina vontade. (QDV 23.7)

Ou como Alguém certa vez disse, "Mas que seja feita a tua vontade e não a minha". Se isto é heteronomia, pior para a autonomia kantiana.

O dizer "fins em si mesmos" não é menos suspeito. Aquino explicitamente considera a questão de se "o próprio homem é seu próprio fim último", e responde que "o fim último do homem é algo fora dele, a saber, Deus" (ST I-II.3.5) dado que "todas as coisas são ordenadas para um bem como seu fim, e este é Deus" (SCG III.17.6, ênfase adicionada). Dada a metafísica por detrás da teoria clássica da lei natural, descrever o homem como "fim em si mesmo" é, como a ideia do homem como "auto-legislador", simplesmente ininteligível. É claro que esta mesma metafísica informa a concepção teísta clássica de Deus que recentemente temos explorado em uma série de posts, e é precisamente o que faz com que tal fala seja inteligível quando aplicada a Deus, e a Deus somente.

Portanto, o abandono desta metafísica resultou não apenas em uma antropomorfização de Deus, trazendo-O para mais perto do nível humano - a reclamação teísta clássica contra o personalismo teísta [L02] - mas também em uma deificação do homem, elevando-o ao nível de Deus. Pessoas modernas gostam de pensar que o primeiro dos Dez Mandamentos é aquele que ninguém mais quebra; afinal, qual a última vez que você viu alguém curvar-se a um ídolo? Mas estamos mais cegos para os pecados que mais nos submetemos. Idolatria é o pecado definidor da modernidade, e é pior por ser dirigida ao homem. Ao menos o antigo pagão sabia o suficiente para adorar algo superior a si mesmo.

Posr esta razão é um erro grave pensar que o único problema com a conversa de "auto-legislador" e de "fins em si mesmos" é que, ausente o tipo de padrões morais eram tidos por garantidos nos tempos do próprio Kant, ela tem uma tendência em degenerar em tum tipo de libertinismo. Se você honra os pais, não mata, não comete adultério, não rouba, não mente e não inveja, faz bem. Você terá cumprido o que Cristo chamou de segundo mandamento - amar o vizinho. Mas você não terá cumprido o primeiro e maior - amar Deus acima de todas as coisas. E se a razão pela qual você honra o segundo é precisamente honrar o homem como fim em si mesmo, você está em perigo de violar o primeiro e maior. O próprio Kant, claramente, era um homem bastante austero; ele ficaria absolutamente horrificado pelo quanto os liberais e libertários agora defendem em nome da "autonomia". De acordo, o pecado original do kantismo não é o aborto, a fornicação, o uso de drogas ou algo do tipo. É, em vez disso, a codificação da blasfema auto-obsessão do homem, a elevação do "é tudo sobre mim" a um princípio moral. E a blasfêmia é apenas aumentada, não diminuída, se a única razão pela qual o blasfemo refreia-se dos pecados em questão é que ele pensa que eles são incompatíveis com seu patológico egocentrismo.

Para deixar claro, eu não estou dizendo que qualquer um que use a linguagem kantiana é culpado de blasfêmia. Como Kraynak enfatiza, pensadores cristãos que têm feito uso dela geralmente a transformam no processo, a fim de torná-la compatível com a teologia cristã e a lei natural. Mas Kraynak também é afiado em enfatizar, muito corretamente em minha opinião, que a ênfase que cristãos modernos colocam nas categorias morais kantianas é insensata. No máximo, é pouca coisa mais que um truque de marketing, uma tentativa de "vender" a moralidade tradicional a cidadãos das sociedades modernas secularizadas mostrando-lhes que ela segue de premissas as quais eles já estão comprometidos. E isso dificilmente funciona, se é que funciona, porque liberais seculares modernos estão bastante cientes de que cristãos ortodoxos e tradicionalistas não interpretam as premissas em questão da mesma forma que eles. Entoar "dignidade humana" e "respeito pelas pessoas" como mantras não vai convencer ninguém que já não concorde com você a opor-se a aborto, eutanásia, pornografia, e tudo o mais, precisamente porque dignidade humana e respeito pelas pessoas são conceitos altamente contestados. O que você precisa fazer é mostrar exatamente como as práticas em questão são incompatíveis com a dignidade humana, e isto implica (eu argumentaria) adentrar precisamente no tipo de considerações da lei natural clássica que se esperava ser capaz de evitar. Mas aí a entoada de "dignidade humana" e "respeito pelas pessoas" acaba tornando-se fútil.

No pior caso, o uso de categorias kantianas pode distorcer seriamente nosso entendimento do que a lei natural e o ensino cristão realmente implicam, mesmo quando aplicados por pensadores de outra forma tradicionais. Para tomar apenas um exemplo, teóricos da "nova lei natural", que têm a reputação de defender a moralidade sexual tradicional e opor-se ao aborto e à eutanásia, nos anos recentes também tenderam à visão de que a pena capital é injusta mesmo em princípio. Isto não apenas vai além de qualquer coisa que a Igreja Católica tenha ensinado, mas (como argumentei em outros lugares [L03]) é simplesmente incompatível com o catolicismo e a teoria clássica da lei natural. Mas (como eu também argumentei na peça apontada) isto também não é inteiramente surpreendente que eles tenham chegado a tal conclusão dado que, a exemplo de Kant, eles esquivam-se de qualquer apelo à natureza humana como entendida em termos da metafísica essencialista e em vez disso embasam suas posições em uma teoria da razão prática que coloca os fins do próprio agente moral (em vez dos fins estabelecidos por nós pela natureza ou pela vontade divina) no assento do motorista.

Nietzsche famosamente caracterizou Kant como uma "aranha catastrófica" porque ele o tomou como tendo influenciado uma moralidade essencialmente cristã na tradição filosófica secular alemã. A verdade é que ele insinuou uma moralidade essencialmente não cristã na tradição cristã, e na civilização ocidental como um todo. Em vez de apropriar de seu trabalho, conservadores e cristãos deveriam lutar para desfazê-lo. Kraynak tem razão, precisamos manter Kant numa caixa. Uma de pinho, com uma estaca no peito.


Notas e Links

[L01]http://edwardfeser.blogspot.com/2010/10/god-obligation-and-euthyphro-dilemma.html Já foi devidamente traduzido por aqui: http://carpinteirouniverso.blogspot.com.br/2017/01/deus-obrigacao-e-o-dilema-de-eutifron.html
[L02]http://edwardfeser.blogspot.com/2010/09/classical-theism.html
[L03]http://web.archive.org/web/20071014120117/rightreason.ektopos.com/archives/2005/12/catholicism_con.html

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Autor Edward Feser
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domingo, 30 de abril de 2017

Teologia Natural Pré-Socrática [Edward Feser]

Teologia Natural Pré-Socrática

Teologia Natural Pré-Socrática

A filosofia ocidental começou com os pré-socráticos. Assim também começou meu interesse próprio pela filosofia, que foi iluminado por um encontro com Tales, Heráclito, Parmênides & CIA em um curso sobre literatura grega que tomei enquanto na graduação, há mais de vinte anos. Estes pensadores são indefinidamente fascinantes. Estou correntemente lecionando um curso em filosofia antiga e terei me atrasado significativamente do cronograma no momento em que estivermos avançado até Sócrates, avesso como eu sou a apressar-me rápido demais nas ideias de seus predecessores.

É comum notar que as características definidoras da filosofia e ciência ocidentaos podem ser encontrados em forma embrionária nos pré-socráticos. Tales e outros monistas ionianos nos dão as primeiras tentativas de reduzir todos os diversos fenômenos da natureza a umam explicação material única, e seus métodos (até onde podemos determinar com base na usualmente escassa evidência) parece ter sido largamente empírica. Pitágoras e seus seguidores inauguraram a ênfase na estrutura matemática como chave para destravar os segredos da natureza. Em Parmênides e Zenão nós vemos as primeiras tentativas de prover demonstrações rigorosas de teses metafísicas abrangentes. A distinção entre aparência e realidade, a tensão entre tendências racionalistas e empiristas do pensamento, e a análise racional e crítica das ideias recebidas são todas evidentes ao longo do período pré-socrático. Seria ir longe demais (para falar o mínimo) sugerir que devemos melhorar Alfred North Whitehead ao fazer de toda a filosofia ocidental uma nota de rodapé dos pré-socráticos em vez de Platão. Mas não seria tão forçado dizer que pelo menos as sementes do que estaria por vir nos próximos dois milênios e meio podem todas ser encontradas em seus trabalhos.

O que é talvez menos largamente observado sobre isso é a extensão a que os pré-socráticos estabeleceram o palco para o desenvolvimento posterior da teologia natural. Para certificar, que Xenofanes criticou o antropomorfismo e Anaxágoras adentrou em problemas por caracterizar o sol como uma pedra quente em vez de uma divindade são largamenrte consideradas como grandes avanços no pensamento humano. Mas a razão usual pela qual eles são assim tratados parece ser porque estes movimentos são considerados passos ao longo do caminho para uma abordagem completamente ateísta, ou pelo menos não-teísta, do mundo. Que Xenofanes quis substituir o politeísmo, não com o ateísmo mas com o monoteísmo, e que Anaxágoras tratava a Mente como necessária para uma explicação do mundo, são geralmente consideradas menos significativas - como se essas ideias não fossem essenciais aos seus pensamentos como os elementos céticos, e como se estes pensadores, e os pré-socráticos em geral, tivessem falta de coragem em suas convicções, e não pudessem levar-se a si mesmos a abandonar completamente a superstição. Esta é certamente a impressão que Christopher Hitchens (por exemplo) deixa em sia breve e caracteristicamente amadora dicussão da antiga filosofia grega em God is not Great, que assegura que a atitude dos antigos atomistas em ignorar (em vez de negar explicitamente) os deuses para propósitos explanatórios era "naquele tempo ... o mais longe que qualquer mente poderia razoavelmente chegar". Tivessem os gregos sido capazes de política e psicologicamente avançar seu racionalismo até sua conclusão lógica, então (assim deveríamos crer) eles seriam todos ateus.

A verdade, porém, é que os avanços feitos pelos pré-socráticos, quando consistentemente organizados, não mais apontam na direção do ateísmo do que apontam na direção do ceticismo sobre o mundo físico externo. Se você desejar falar da forma que Paul Churchland e outros materialistas eliminativistas falam (algo que você não deveriua desejar, mas deixa para lá), você pode dizer que o que os pensadores pré-socráticos (ou alguns deles, que seja) dizem é que à luz da razão, a "física popular" - nosso entendimento cru e de senso comum dos funcionamentos do mundo físico - deve dar caminho não para a física de todo, mas em vez disso para a física científica. Semelhantemente, a "teologia popular" - os crus antropomorfismos do politeísmo e da superstição - deveria dar lugar não a nenhuma teologia de todo, mas à teologia racional, par ao que desde então veio a ser conhecido como teologia natural. De fato, como uma vez foi conhecimento comum entre filósofos ocidentais, como David Conway recentemente nos relembrou em seu The Rediscovery of Wisdom [LBA1], e como extensamente documentou Lloyd Gerson em God and Greek Philosophy [LBA2], os grandes pensadores gregos, incluindo muitos dos pré-socráticos, tratavam o teísmo como essencial para uma completa abordagem científica do mundo.

Esses ateus vulgares (os neos e os outros) que intencionam encontrar nos gregos as sementes de sua própria posição ateísta falham em perceber a centralidade do teísmo para a tradição grega por diversas razões. Primeiro, eles assumem estupidamente (não há como colocar isso de forma mais suave e mesmo assim precisa) que monoteísmo é somente como o politeísmo mais econômico, como se o Deus da teologia filosófica clássica (e do judaísmo, cristianismo e islão para o caso) fossem apenas como Zeus ou Odin, menos o destacamento. Dado que deuses ploiteístas são tipicamente concebidos em termos toscamente antropomórficos, é concluído que o Deus da teologia filosófica clásssica deve ser basicamente o mesmo tipo de ser - despido de alguns dos antropomorfismos mais flagrantes, talvez, mas essencialmente como os outros deuses exceto por ser o único deles. Portanto Sam Harris assegura-nos que o presidente dos EUA apelar em público a Deus deveria nos atingir como algo tão ultrajante e absurdo quanto uma invocação presidencial de Zeus ou Apolo seria.

É claro, tem que ser extremamente ignorante sobre história da religião, teologia, e filosofia, para pensar que o teísmo filosófico, ou o teísmo em geral, é de qualquer forma compatível com o politeísmo rasteiro; e culpavelmente ignorante também, para os Novos Ateístas, que apresentam-se a si mesmos como iluminadores bem-educados e sofisticados das massas ignorantes, e poderiam facilmente informar a si mesmos dos fatos se realmente quisessem. Mesmo assim, Harris, Hitchens & CIA, em uma imensa façanha de Jiu-Jitsu intelectual, de alguma forma fizeram de seus oponentes os ignorantes e desonestos. De qualquer forma, se alguém realmente pensa que tratar o teísmo como essencial à ciência é como tratar a crença em Pã ou na Fada do Dente como essencial à ciência, então não é surpreendente que este alguém falhará em notar como os grandes filósofos gregos, brilhantes como eram, poderiam possivelmente ter tratado o teísmo como pedra angular da empreitada científica.

Então existe o cientificismo tosco dos ateus vulgares, de acordo com o qual o "método científico" como eles aprendem no colegial constitui o único caminho para o conhecimento - não obstante que tal alegação seja ela mesma filosófica e não científica (pelos seus próprios padrões, de qualquer forma) afinal, e que o que conta como "método científico" é por si mesmo um assunto filosoficamente complexo e controverso. Obrigados como são a uma cartunesca figura "apenas-observe-os-fatos-madame" do que a ciência envolve, eles não podem sondar como alguém pode tratar qualuer coisa supra-empírica como dentro da abrangência do conhecimento científico. Portanto eles não podem entender como as tendências teológicas dos filósofos gregos pdoeriam ser parte e parcela dos seus avanços científicos, em vez de um desvio deles.

Como Christopher Martin mostra em Thomas Aquinas: God and Explanations [LBA3], você não pode entender completamente os argumentos de Aquino para a existência de Deus (ou seus precursores aristotélicos) a não ser que compreenda como eles encaixam-se na concepção aristotélica do que a ciência é, e que eles intencionam ser (e de fato são) argumentos científicos perfeitamente respeitáveis dada esta (ainda perfeitamente defansável) concepção. (Note que eu estou afirmando que é a concepção aristotélica do que a ciência é que é completamente defensável - não esta ou aquela específica alegação científica feita por Aristóteles, muitas das quais foram obviamente refutadas.) Independente de se a concepção aristotélica de o que conta para a ciência estar correta, porém, a ciência empírica como praticada hoje só é possível dadas certas suposições filosóficas, em especial sobre a natureza da causação. Como argumento longamente em The Last Superstition [LBA4], estes argumentos acarretam, quando trabalhados consistentemente, a existência de uma Primeira Causa divina. E eu quero dizer por acarretam: A tradição clássica na teologia natural não sugere, como no estilo de William Paley e seus sucessores em seu movimento pelo "Design Inteligente", que algo parecido com o Deus do teísmo tradicional "provavelmente" está por detrás desta característica complexa específica do mundo. Ela mantém que a existência do Deus do teísmo tradicional é necessária, e racionalmente inevitável, dada a existêbncia de qualquer causação que seja no mundo, mesmo as mais simples. E como Gerson mostra, é evidente do que sabemos que pelo menos alguns dos pré-socráticos que eles tinham mais que uma suspeita disso. Quer dizer, eles (ou alguns deles) sabiam que é o teísmo em vez do ateísmo o resultado lógico de uma abordagem racionalista sobre o mundo.

Que alguns deles estavam tão dispostos quanto estavam a franzir os narizes para o politeísmo grego, até o ponto de sofrerem perseguição, apenas reforça o ponto. Como Gerson enfatiza, não existe nada que seja de motivo apologético no pensamento de filósofos como Xenofanes e Anaxágoras. Eles não estavam racionalizando alguma preconcepção ou ideia recebida, dado qe eles rejeitavam alta e ruidosamente as ideias recebidas, e seu teísmo (ou proto-teísmo) era ele mesmo novidade. Eles portanto deram lugar a uma das lorotas favoritas do ateu vulgar, no sentido que os argumentos filosóficos para a existência de Deus são apenas tentativas desonestas de reforçar ilusões confortantes em vez de uma busca sincera pela verdade.

Na obra dos pré-socráticos encontramos precursores de alguns dos elementos-chave do teísmo clássico de Agostinho, Anselmo, e Aquino. Na noção de Anaximandro do apeiron ou "ilimitado" nós temos uma antecipação da compreensão que o que ultimamente explica os diversos fenômenos do mundo não pode ela mesma ser caracterizada em termos que aplicam-se ao mundo (ou ao menos não univocamente, como acrescentariam os tomistas). De Parmênides nós obtemos o princípio que ex nihilo nihil fit (do nada nada vem), que prenuncia o "princípio da causalidade" dos escolásticos e o argumento da Causa Primeira que repousa sobre este. Derivamos dele também a descoberta que a realidade última deve ser o Ser Em Si Mesmo em vez de um ser entre outros seres, imutante e imutável, e necessariamente um em vez de vários. Em Anaxágoras encontramos a percepção que a causa das coisas deve ser uma Mente em vez de um absoluto impessoal. Levaria ainda a obra de pensadores posteriores - Platão em alguma extensão, Aristóteles em grande extensão, e os escolásticos em uma extensão ainda maior, culminando em Tomás de Aquino e a tradição tomista derivada dele - para trabalhar estas percepções de uma maneira completa e sistemática. Mas assim como com a ciência e filosofia ocidentais mais geralmente, as sementes já estavam nos pré-socráticos; em particular, eles fizeram a ruptura decisiva com o antropomorfismo sobre o pensar em Deus.

Os Neo Ateístas, então, com sua tosca concepção espantalho de Deus, estão menos avançados intelectualmente que aqueles pioneiros de dois milênios e meio atrás. Mas para sermos justos com eles, não é de todo falha deles. Afinal a apologética popular contemporânea, e mesmo uma parte da filosofia da religião contemporânea, vem sendo infectada com um antropomorfismo que, enquanto menos impolido que o politeísmo antigo, não obstante abre seus aderentes a objeções que não têm força contra àquelas de Aristóteles, Agostinho, Anselmo ou Aquino, para não mencionar seus precursores pré-socráticos.

Brian Davies tem utilmente distinguido [LBA5] entre o teísmo clássico - que domina a grande tradição dominante na teologia natural, como representada pelas figuras acima mencionadas - e o "teísmo personalista", que ele detecta no pensamento de filósofos contemporâneos da religião como Richard Swinburne e Alvin Plantinga, e que eu creio que também possa ser claramente encontrado em William Paley (que modela Deus por projetistas humanos), no movimento contemporâneo de "Design Inteligente", entre aderentes de uma visão atualmente modernosa de "teísmo aberto", e em incontáveis trabalhos de apologética popular. A concepção teísta clássica de Deus começa com a ideia que Deus é a causa sustentadora do mundo e portanto é ultimamente distinto dele. O "teísmo personalista" (também conhecido como neoteísmo) começa com a ideia que Deus é uma "pessoa" ao lado de outras pessoas, apenas sem as limitações características das pessoas com as quais somos mais familiares (a saber, nós). Enquanto o teísmo clássico tipicamente chega a uma detalheda concepção de Deus determinando que tal causa do mundo deve assemelhar-se - e famosamente chega a um Deus que é radicalmente diferente de nós de fato (fora do tempo e do espaço, pura atualidade, ser em si mesmo etc.) - o teísmo personalista desenvolve sua concepção de Deus abstraindo progressivamente as características típicas de nós enquanto pessoas finitas. Portanto ele faz de Deus uma pessoa meio que como nós, apenas sem um corpo, sem nossas fraquezas morais, sem as barreiras ao conhecimento e poder que temos, e assim por diante. A concepção de Deus que resulta é, certamente, bem diferente de Zeus, Apolo ou Pã. Mas é claramente atropomórfica, mesmo que de alguma forma rarefeita.

Como Davies aponta, muitas das objeções levantadas pelos céticos contra o teísmo e os argumentos teístas tradicionais realmente têm força somente contra o teísmo personalista, e não contra o teísmo clássico. (Davies desenvolveu esta ideia mais completamente em relação ao problema do mal. Veja seu livro The Reality of God and the Problem of Evil [LBA6].) Dada a obsessão dos neo-ateístas com Paley (como se ele fosse a única pessoa a dar algum argumento pela existência de Deus), e que seu entendimento com outros pensadores provavelmente não se estende mais que uma rápida folheada de algum tratado popular de apologética, talvez não seja surpreendente que eles pensem que o teísmo seja mais ou menos antropomorfista. Novamente, isto não os escusa: qualquer um evidenciando o senso de superioridade moral e intelectual que Dawkins, Dennett, Harris e Hitchens evidenciam tem que ter feito muito bem seu dever de casa e engajar seriamente com a tradição teísta representada por Aristóteles, Agostinho, Anselmo, Aquino e Leibniz, apenas para dar alguns nomes; e (como demonstrei em The Last Superstition) nenhum dos Novos Ateístas chegou perto disso. Não obstante, o teísmo personalista explícito ou implícito de Paley e seus sucessores e de certos filósofos da religião contemporâneos tem turvado as águas intelectuais consideravelmente e (na minha visão) inconscientemente dado ajuda e conforto ao inimigo.

Aqui, como em tudo na vida humana, o remédio é retornar e aprender dos nossos antepassados, incluindo aqueles pais da filosofia, ciência e teologia natural, os pré-socráticos.

Postscript 1: Para aqueles interessados em filosofia pré-socrática, o novo livro de Raymond Tallis [LBA7] sobre Parmênides parece bastante interessante de fato. Infelizmente, também é apavoradoramente caro. Mas um resumo grátis pode ser visto aqui [LBA8].

Postscript 2: Minha referência a "ateus vulgares" naturalmente levanta a questão de se eu reconheceria que existem ateus não-vulgares. A resposta, claro, é sim. Eu gostaria de pensar que meu antigo eu seria um exemplo. (Eu fui ateu por muitos anos, antes de tornar-me convencido que os argumentos teístas tradicionais, quando propriamente compreendidos - quer dizer, quando as caricaturas estúpidas e objeções desprezíveis vendidas pelos neo-ateus e seus detritos são descartadas - são convincentes. Pessoas que dizem que argumentos filosóficos nunca levaram ninguém a Deus não sabem do que estão falando.) Exemplos mais importantes de ateus sérios ou não-vulgares são J. L. Mackie, J. J. C. Smart, e Quentin Smith.


Notas e Links

[LBA1]http://www.amazon.com/Rediscovery-Wisdom-David-Conway/dp/0333747119/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=books&qid=1221694524&sr=1-1
[LBA2]http://www.amazon.com/God-Greek-Philosophy-Studies-Theology/dp/0415113059/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=books&qid=1221694295&sr=1-1
[LBA3]http://www.amazon.com/Thomas-Aquinas-Christopher-Martin/dp/0748609016
[LBA4]http://www.amazon.com/Last-Superstition-Refutation-Atheism-American/dp/1587314517/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=books&qid=1221694830&sr=1-1
[LBA5]http://www.amazon.com/Introduction-Philosophy-Religion-Brian-Davies/dp/0199263477/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=books&qid=1221694908&sr=1-1
[LBA6]http://www.amazon.com/Reality-God-Problem-Evil/dp/082649241X/ref=sr_1_12?ie=UTF8&s=books&qid=1221694948&sr=1-12
[LBA7]http://www.amazon.com/Enduring-Significance-Parmenides-Unthinkable-Philosophy/dp/082649952X/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=books&qid=1221695021&sr=1-1
[LBA8]http://web.archive.org/web/20071222231359/http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=9972

META
Título Original Pre-Socratic natural theology
Autor Edward Feser
Link Original http://edwardfeser.blogspot.com.br/2008/09/pre-socratic-natural-theology.html
Link Arquivado http://archive.is/Igmyl

sábado, 1 de abril de 2017

É Errado Mentir Para HAL? [Edward Feser]

É Errado Mentir Para HAL?

É Errado Mentir Para HAL?

Enquanto ainda estamos em 2010, vamos falar de 2010 [nt-01]. Eu tive uma ocasião para asisti-lo recentemente, e ainda que não seja tão bom quanto 2001 [nt-02], continua sendo um belo filme (não obstante sua ingênua abordagem "mas não podemos todos ser amiguinhos?" típica dos progressistas dos anos 80 acerca da Guerra Fria). Há uma cena grandiosa na qual Dr. Chandra, que foi orientado a mentir para HAL (o computador que famosamente descontrolou-se em 2001 mas foi reiniciado em 2010), luta com sua consciência até finalmente decidir falar a HAL a verdade. Seria errado ele agir de outra forma?

Do ponto de vista da teoria clássica de lei natural, mentir é sempre intrinsecamente errado. Pois, como Aquino argumenta [nt-03], mentir é diretamente contrário ao fim natural de nossas faculdades comunicativas, que são para transmitir o que realmente está em nossas mentes. Hoje em dia, a visão que mentir é inerentemente errado é considerada excêntrica ou mesmo insana, mas historicamente não é incomum. É possível encontrá-la em Aristóteles, por exemplo, e em Kant. E enquanto eu não iria longe demais a ponto de dizer que nenhuma pessoa racional poderia disso duvidar, eu sugeriria que isto só se dá em uma cultura tão moral e intelectualmente apodrecida como a nossa por seu pensamento anti-essencialista e consequencialista [nt-04] que poderia parecer (como ocorre a muitas pessoas hoje) bizarra demais para levar-se a sério. Historicamente, a maioria das culturas entendera que o que é bom para nós é de alguma forma determinado pelos fins que a natureza estabelecera para nossas várias capacidades, e (adequadamente) que algumas coisas são intrinsecamente ruins porque são contrárias a estes fins. E que é por isso que a visão de que mentir é inerentemente imoral não é historicamente incomum. Enquanto sempre teve aqueles que duvidavam disso, a maioria das pessoas historicamente poderia ao menos entender por que mentir poderia ser inerentemente ruim.

Também é importante ser preciso sobre o que esta visão realmente é. A asserção não é que devamos sempre contar aos outros o que de fato está em nossas mentes. Nós podemos (e algumas vezes devemos) nos manter em silêncio, ou mudar de assunto, ou tentar distrair o ouvinte, ou de alguma outra forma evitar dizer o que de fato pensamos. Podemos brincar e fazer anedotas, ou atuar num filme ou peça, porque é geralmente subentendido que as palavras que dizemos nesses contextos nem mesmo pretendem expressar nossos reais pensamentos. Podemos usar expressões que poderiam em um sentido literal serem falsidades mas que por uma matéria de convenção têm sido usadas de uma maneira eufemística não-literal. (Por exemplo, "Ele não está", quando dito por uma secretária, geralmente é entendido como sendo uma forma polida de dizer que, estando a pessoa ou não presente, ela não quer atender chamadas ou visitas; "Gostei desse teu vestido!" geralmente é entendido como ser o tipo de coisa que se poderia dizer polidamente mesmo que não se ache mesmo isso do vestido. E assim por diante.) Relativo a isso, não é necessariamente errado falar com uma reserva mental - por exemplo, usar palavras geralmente entendidas como ambíguas de tal forma que o ouvinte poderia plausivelmente determinar seu verdadeiro intento, apesar de que o falante sabe que o ouvinte irá provavelmente entendê-los de forma diversa. Finalmente, nem toda mentira é gravemente imoral; em termos católicos, mentir nem sempre é pecado mortal, mesmo quando feito com suficiente conhecimento e deliberação. Contexto e matéria abordada são relevantes para sua gravidade.

Ainda assim, uma mentira real - deliberadamente falar ou de outra forma comunicar de uma maneira que é inambiguamente contrária ao que realmente se pensa - é sempre no mínimo levemente imoral. A teoria clássica de lei natural não afirma que não devemos jamais usar uma capacidade natural de outra maneira que não seja seu fim natural, ou mesmo, necessariamente, que devemos usá-la afinal. Mas ela diz que não podemos usá-la enquanto ao mesmo tempo frustrando seu fim natural. E é isso o que mentir envolve na medida que implica usar a fala nas suas faculdades comunicativas enquanto deliberadamente frustrando o fim natural da comunicação. (Eu não vou abordar o caso para a teoria clássica de lei natural aqui. Vejam Aquinas [nt-05], em especial o capítulo 5, para a teoria geral; The Last Superstition [nt-06], em especial o capítulo 4, para uma aplicação ao tópico da moralidade sexual; e meu artigo "Classical Natural Law Theory, Property Rights, and Taxation" [nt-07] para uma aplicação a questões relacionadas à propriedade privada. A primeira metade deste último artigo contém também um rascunho da teoria geral, porém o pano de fundo metafísico é mais completamente apresentado nos livros.)

Retornando à nossa questão original, então, o Dr. Chandra teria feito algo imoral ao mentir a HAL? Dado o que foi dito, a resposta pareceria óbvia: se ele deliberadamente informou a HAL algo que ele sabia ser falso, ele estaria frustrando a finalidade natural da fala comunicativa e portanto agindo imoralmente. Mas as coisas não são tão simples. Afinal a comunicação é por sua natureza interpessoal. Como os teóricos da lei natural que escrevem sobre esse assunto gostam de colocar, você não pode mentir para seu cachorro mesmo que intencionalmente profira algo falso para ele. Então, enquanto é verdade que Dr. Chandra teria feito algo imoral acaso mentisse para HAL, há outra questão se ele realmente poderia ter mentido para HAL mesmo que tentasse. Afinal isso seria possível somente se HAL fosse uma pessoa. HAL é uma pessoa?

Naturalmente, alguém que aceita a concepção computacionalista da mente [nt-08] poderia dizer que HAL é uma pessoa. Mas eu diria que ele não é. Isto é em parte por razões baseadas no aristotelismo-tomismo. Uma pessoa é uma substância individual de natureza racional, e artefatos não são substâncias no sentido estrito. Além disso, racionalidade implica imaterialidade. Portanto, sendo HAL (como qualquer outra máquina) inteiramente material, não pode ser racional; e sendo um artefato e portanto não sendo uma verdadeira substância, não pode possivelmente ser uma pessoa. (Obviamente isto é apenas um sumário; veja o capítulo 4 de Aquinas para os detalhes.) Também há os argumentos contra o modelo computacional da mente avançados por Hubert Dreyfus [nt-09] e John Searle, que considero decisivos. Particularmente importante é o argumento do artigo de Searle, "Is the Brain a Digital Computer?" [nt-10], que é menos conhecido que seu famoso argumento da sala chinesa mas mais fundamental e devastador. (Ele também pode ser encontrado no capítulo 7 do seu livro The Rediscovery of the Mind [nt-11].)

Obviamente este é um assunto amplo, e não é possível estabelecer um ponto final aqui. Mas se HAL de fato não é uma pessoa afinal, mas apenas um dispositivo que imita o padrão de fala de uma pessoa, então mesmo que Dr. Chandra intencionalmente tenha dito algo falso a HAL ele não estaria mentindo. Suas ações seriam análogas àquelas dos que, por diversão, usam o comando de voz "dois mais dois são cinco" para ativar um sistema de alarme. Portanto, Chandra não deveria ter escrúpulos acerca de "mentir" para HAL, porque ele não estaria verdadeiramente mentindo afinal.

É interessante, porém - e, diria eu, notável - que os produtores do filme pensaram, muito corretamente, que este ponto do enredo tinha interesse dramático. Arthur C. Clarke (o autor dos romances 2001 e 2010) certamente não tinha nenhum machado legal ou teológico para esmerilar, e certamente os diretores também não. E ainda assim eles claramente intentaram para que a audiência tomasse o dilema moral de Dr. Chandra seriamente. Independente do que possamos dizer, Chandra trata HAL como pessoa que "merece" ouvir a verdade: "Se somos baseados em carbono ou sílica, não faz nenhuma diferença fundamental, nós devemos, cada um, ser tratados com o devido respeito!". Não é esperado que pensemos: "Ah, fala sério, mesmo assim, é óbvio o que Chandra precisa fazer. As vidas dos tripulantes estão em risco. E HAL provavelmente será destruído de toda forma, então é melhor para ele também pensar de outra maneira, por sua própria paz de mente. Considere as consequências de contar-lhe a verdade! O que Chandra é, algum tipo de absolutista reacionário da lei natural?". Em vez disso, espera-se que pelo menos entendamos porque Dr. Chancra sente-se desconfortável mentindo, e de fato considerar sua decisão final de contar à HAL a verdade como nobre.

Parece então que, ao menos entre algumas das audiências progressistas e seculares para as quais um filme como 2010 tem por intenção apelar, as quais provavelmente escarneceriam da posição da lei natural acerca da mentira como bizarra e extrema, mesmo assim encontram-se em compreensão solidária com algo do tipo quando é apresentado num contexto ficcional. Não obstante o quanto nós podemos tentar encobrir isto com alguma teoria moral revisionista conscientemente articulada, a nossa incipiente compreensão inconsciente da lei natural pode vazar de formas inesperadas.

(Esta dissonância cognitiva encarada diante do que as audiências progressistas gostam de ver em seus heróis ficcionais mas critica em seres humanos reais é algo que abordei antes, em um post sobre Watchmen [nt-12]. Eu discuti previamente as questões metafísicas levantadas por filmes de ficção científica em um post sobre The Fly [nt-13].)


Notas e Links

nt-01

http://en.wikipedia.org/wiki/2010_(film)

nt-02

http://en.wikipedia.org/wiki/2001:_A_Space_Odyssey_(film)

nt-03

http://www.newadvent.org/summa/3110.htm

nt-04

http://www.intellectum.org/articles/issues/intellectum6/en/ITL06p005015_Why%20I%20am%20not%20a%20consequentialist_David%20S%20%20Oderberg.pdf

nt-05

http://www.amazon.com/Aquinas-Beginners-Guide-Edward-Feser/dp/1851686908/ref=pd_sim_b_1

nt-06

http://www.amazon.com/Last-Superstition-Refutation-New-Atheism/dp/1587314517/ref=pd_bxgy_b_text_b

nt-07

http://journals.cambridge.org/action/displayFulltext?type=1&fid=6819880&jid=SOY&volumeId=27&issueId=01&aid=6819872

nt-08

http://plato.stanford.edu/entries/computational-mind/

nt-09

http://books.google.com/books?id=7vS2y-mQmpAC&printsec=frontcover&dq=hubert+dreyfus&hl=en&ei=Ie3UTIiBM4y6sAOLsfSNCw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=2&ved=0CDIQ6AEwAQ#v=onepage&q&f=false

nt-10

http://users.ecs.soton.ac.uk/harnad/Papers/Py104/searle.comp.html

nt-11

http://books.google.com/books?id=eoh8e52wo_oC&printsec=frontcover&dq=john+searle&hl=en&ei=c-3UTKHvCIy-sQOJ5o2NCw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=8&ved=0CFQQ6AEwBw#v=onepage&q&f=false

nt-12

http://edwardfeser.blogspot.com/2009/08/rorschach-test.html

nt-13

http://edwardfeser.blogspot.com/2010/05/metaphysics-of-fly.html


META

Título Original

Is it wrong to lie to HAL?

Autor

Edward Feser

Link Original

http://edwardfeser.blogspot.com.br/2010/11/is-it-wrong-to-lie-to-hal.html

Link Arquivado

http://archive.is/mzHUL

domingo, 15 de janeiro de 2017

Deus, Obrigação e o Dilema de Eutífron [Edward Feser]

Deus, Obrigação e o Dilema de Eutífron

Deus, Obrigação e o Dilema de Eutífron

Table of Contents

Deus tem obrigações conosco? Não, Ele não tem. Mas isto não implica que Ele possa fazer qualquer coisa conosco? Não, não implica. Mas como pode ser? Para ver como, considere primeiro outro falso dilema correlato: o famoso Problema de Eutífron.

O dilema de Eutífron é como se segue: Deus nos comanda a fazer aquilo que é bom. Mas alguma coisa é boa simplesmente porque Deus a comanda, ou Ele a comanda porque já é boa? Se tomarmos a primeira opção, então parece que estamos comprometidos com a possibilidade de que Deus possa fazer com que seja bom para nós torturar bebês apenas por prazer, simplesmente comandando isto. Se tomarmos a segunda opção, então parece que estamos comprometidos com dizer que existe um padrão de bondade independente de Deus, ao qual Ele se refere a nós quando Ele comanda. Nenhuma das opções parece boa para o ponto de vista do teísmo. A primeira torna a moralidade arbitrária, e a afirmação que Deus é bom se torna completamente trivial. A segunda conflita com as afirmações nucleares do teísmo que Deus é a causa fundamental de todas as coisas, e em particular a fonte de toda bondade. Então, temos um problema, correto?

Na realidade, não temos, porque o dilema é falso – certamente do ponto de vista do tomismo, por razões que eu explico em Aquinas. Como com todas as supostamente grandes e malvadas objeções ao teísmo, esta repousa numa caricatura, e numa falha em fazer as distinções cruciais. Primeiramente, precisamos distinguir o assunto do conteúdo das obrigações morais do assunto do que as dá sua força de obrigação. Comando divino é relevante para o segundo assunto, mas não para o primeiro. Segundo, é um erro pensar que anexar moralidade de qualquer jeito aos comandos divinos deve fazê-la de tal extensão arbitrária, um produto do caprichoso fiat divino. Pode ser de tal forma que pensarmos nos comandos divinos em termos do nominalismo e voluntarismo de Ockham, mas não se, seguindo Aquino, mantivermos que a vontade segue após o intelecto, tal que Deus sempre aja de acordo com a razão. Terceiro, não acarreta que o que determina o conteúdo da moralidade e a razão de Deus para comandar o que Ele comanda é de qualquer maneira independente dEle.

A situação real então é esta. O que é bom ou ruim para nós é determinado pelos fins estabelecidos por nós pela nossa natureza, e dada a metafísica essencialista a qual Aquino estava comprometido, isto significa que existem certas coisas que são boas ou más para nós absolutamente, as quais sequer Deus poderia mudar (já que o poder de Deus não se estende a fazer o que é auto-contraditório). Agora Deus, dada a perfeição de Seu intelecto, pode em princípio apenas ordenar de acordo com a razão, e portanto Deus não pode jamais nos comandar fazer o que é mau para nós. Portanto o primeiro chifre do dilema é neutralizado: Deus não pode jamais nos comandar torturar bebês por diversão, porque torturar bebês por diversão é o tipo de coisa que, dada nossa natureza, não pode jamais em princípio ser boa para nós. Mas as essências que determinam os fins das coisas – nossos fins, e para que importância o fim da razão também como inerentemente dirigida para o verdadeiro e o bom – não existe independentemente de Deus. Em vez disso, dado o entendimento realista escolástico de universais, elas preexistem no intelecto divino como ideias ou arquétipos por referência aos quais Deus cria. Portanto, o segundo chifre do Dilema de Eutífron também é neutralizado.

Mantenha em mente que, como eu notei em meu post sobre o "desafio do deus maléfico" de Law, a metafísica por detrás dos argumentos do teísmo clássico leva à ‌conclusão que Deus não é uma coisa boa entre outras mas de fato é a própria Bondade. Dada a simplicidade divina, isto significa que o que nós pensamos como a bondade distintiva dum ser humano, a bondade distintiva duma árvore, bondade distintiva dum peixe, e por aí vai – cada uma associada com uma essência distinta – todas existem de uma maneira indiferenciada na Bondade que é Deus. Como coloquei num post anterior, "na criação, o que é ilimitado e perfeito em Deus vem à existência de uma maneira limitada e imperfeita na ordem natural … As ideias divinas de acordo com as quais Deus cria são portanto para serem compreendidas como o alcance do intelecto divino sobre as diversas maneiras nas quais a essência divina pode ser imitada de uma maneira limitada e imperfeita pelas coisas criadas".

Simplicidade divina também acarreta, é claro, que a vontade de Deus é justamente a bondade de Deus que justamente é Sua imutável e necessária existência. Isto significa que o que é objetivamente bom e o que Deus quer para nós como moralmente obrigatório são realmente a mesma coisa considerada sob diferentes descrições, e que não podem ter sido de outra maneira diferente da que elas são. Não existe questão então, ou se Deus arbitrariamente comanda algo diferente para nós (torturar bebês por diversão, ou o que seja) ou se existe um padrão de bondade à parte dEle. Novamente, o Dilema de Eutífron é falso; a terceira opção que ele falha em considerar é que aquilo que é moralmente obrigatório é o que Deus comanda de acordo com um padrão não mutável e não arbitrário de bondade que não é independente dEle. (Como Eleonore Stump aponta em seu livro sobre Aquino, seu papel em resolver o Dilema de Eutífron é uma razão pela qual teístas deveriam tomar seriamente a doutrina de Aquino sobre a simplicidade divina.)

Agora, retornemos à questão se Deus tem ou não obrigações para conosco. Ser obrigado é ser sujeito a uma lei, onde, como Aquino afirma, "uma lei é imposta sobre outros a propósito de regra e medida" (ST I-II.90.4). Além disso, "a lei deve observar principalmente o relacionamento para a felicidade", quer dizer, a realização do que é bom para aqueles debaixo dela (ST I-II.90.2). Mas Deus não tem superior que imponha qualquer lei ou obrigação a Ele, não existe bem que Ele precisa realizar desde que Ele já é a própria Bondade e já possui suprema Beatitude, e de acordo não existe regra ou medida fora dEle contra a qual Suas ações possam ser avaliadas. Ele não está sob controle da lei moral precisamente porque Ele É a lei moral. "Tudo que está nas coisas criadas por Deus, seja contingente ou necessário, é sujeito à lei eterna: enquanto coisas pertencentes à Divina Natureza ou Essência não são sujeitas à lei eterna, mas são a própria lei "(ST I-II.93.4, ênfase acrescida).

Mas entender o que isto significa é justamente entender que Deus só possa querer o que é bom para nós. Pois, como notado acima, Deus só pode querer de acordo com a razão, e seria perverso e irracional querer criar alguma coisa sem querer o que é por sua natureza bom para tal coisa. Se "a natureza nada faz em vão" (Aristóteles, De Anima III.9 432b21), então nem Deus, o Autor da natureza. Ele permite o mal, mas somente porque Ele pode trazer algo bom dele (ST I.2.3). Portanto, Aquino diz "Enquanto `pertence ao melhor produzir o melhor’, não cabe que na suprema bondade de Deus deva produzir coisas sem dar a elas sua perfeição. Agora a perfeição fundamental de uma coisa consiste na realização de seu fim. Portanto pertence à Divina bondade, dado que ela traz coisas à existência, assim então levá-las ao seu fim"(ST I.103.1).

Desta forma, Deus nos ama e nos ama perfeitamente, poque amar é querer o bem do outro, e Deus não pode falhar em querer o que é bom para nós. Desde que bondade moral concerne a vontade, segue que Deus é moralmente bom, e perfeitamente. Mas Sua bondade moral não é como a nossa, desde que não envolve cumprir obrigações, adquirir virtudes, ou coisas do tipo. Contrário ao que alguns teístas personalistas parecem pensar, isto não faz Sua bondade moral de alguma forma inferior à nossa. Isto a faz infinitamente superior.

1 META

Table 1: META
Título Original God, obligation, and the Euthyphro dilemma
Autor Edward Feser
Link Original http://edwardfeser.blogspot.com/2010/10/god-obligation-and-euthyphro-dilemma.html
Link Arquivado http://archive.is/eZTD6

Created: 2019-02-04 seg 22:02

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