domingo, 11 de novembro de 2018

"Violência em Palavra e Ação" [Edward Feser]

Violência em Palavra e Ação

Violência em Palavra e Ação

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O sempre útil Dictionary of Scholastic Philosophy de Bernard Wuellner define violência como "ação contrária à natureza de uma coisa". Leitores de Aristóteles e Aquino estarão familiarizados com este uso, que se reflete em sua distinção entre movimento natural e violento. Algumas de suas aplicações desta distinção pressupõem uma ciência obsoleta. Por exemplo, nós sabemos atualmente que objetos físicos não têm movimento rumo ao centro da terra, especificamente, como seu fim natural. Portanto o movimento de um projétil para fora da terra não é violento afinal. Mas a distinção por si só não é obsoleta. Por exemplo, enjaular ou matar um animal é obviamente violento no sentido relevante. É agir contrariamente aos fins naturais do animal.

Violência por si só não é ruim. Quando um leão mata uma gazela, ele age violentamente no tocante a frustrar os fins naturais da gazela. Mas o leão dessa forma cumpre em vez de frustrar seus próprios fins naturais. É bom para o leão fazer isso, ainda que seja mau para a gazela. De fato, impedir o leão de agir violentamente sobre outras coisas seria um ato de violência sobre o leão, na medida em que impediria o leão de fazer o que sua natureza o incita a fazer. Esta violência sobre o leão pode ser uma coisa boa – por exemplo, se você tem uma gazela de estimação que quer proteger.

Note que não há nada de especial sobre os animais aqui, mesmo que a violência que eles infligem e sofrem seja especialmente vívida. Mesmo herbívoros agem violentamente quando comem plantas. Afinal, comer uma planta é frustrar seus fins naturais.

Você pode se perguntar: "Mas a teoria da lei natural não diz que é sempre ruim agir contrariamente à natureza?". Não, não é o que ela diz. Ela diz que é ruim para humanos agir contrariamente à sua própria natureza. Mas, como o leão, um ser humano pode fazer alguma coisa boa agindo contra a natureza de outra coisa, assim como fazemos a todo momento que matamos uma planta ou animal a fim de comer e portanto nos nutrir. O que é bom para uma coisa é determinado pela sua própria natureza, não por uma "natureza" em algum largo sentido abstrato.

Dito isso, desde que seres humanos são animais sociais, o que é natural para outros seres humanos é parte do que é constitutivo do bem de qualquer outro ser humano. Por exemplos, genitores realizam seus próprios fins naturais precisamente ajudando seus filhos a realizar os deles. A raça humana é um tipo de família estendida, e parte do que é bom para nós é agir de uma maneira consistente com todos realizando o que é bom para todos (apesar de nossas obrigações positivas de auxiliar outros a florescer são em geral menos fortes quanto mais removidos eles estão de nós, como eu expliquei noutra feita). Portanto é contrário à lei natural agirmos sobre outros seres humanos da maneira que seria permitido agir sobre plantas e animais não-humanos.

Agora, principal entre nossos fins naturais estão aqueles que seguem de sermos animais racionais, possuindo intelecto e livre arbítrio. Portanto, matar ou de outra forma machucar outros seres humanos não é a única forma de agir violentamente contra eles, no sentido de agir contrariamente à sua natureza. Existe também um tipo de violência envolvida quando agimos contrariamente à nossa natureza racional, recusando-se a interagir com eles no nível do discurso racional ou frustrando suas justas escolhas livres.

Portanto, como animais racionais e sociais, é constitutivo do que é bom para cada um de nós interagir com outros seres humanos de uma maneira que respeite seus intelectos e livres arbítrios. Quando lidando com outros seres humanos, há uma presunção moral de que quando queremos que eles pensem ou façam algo, nós temos que assegurar este resultado persuadindo-os racionalmente em vez de recorrer à força, ameaças ou outros tipos de intimidação, manipulação psicológica ou coisa que o valha.

Esta presunção pode ser suspensa. Por exemplo, crianças geralmente não querem fazer o que seus pais lhes dizem para fazer, mesmo quando o que os pais lhes pedem é perfeitamente razoável e bom para eles. Tais crianças estão agindo contrariamente à razão, e pais têm autoridade para coagi-las ou puni-las pela desobediência mediante meios razoáveis (reprimendas verbais, palmadas, retirada de privilégios, ou qualquer outra coisa).

Uma pessoa insana também pode ser coagida, precisamente porque é incapaz de ação racional e pode ser um perigo para si mesma ou para outros. Aqueles culpados de crimes podem também ter seus direitos a certos bens detidos, o que pode incluir sua propriedade, liberdade, ou em alguns casos até a vida, e eles podem ser coagidos de acordo. De fato, como argumenta Aquino, nossa inclinação em punir malfeitores é ela mesma uma inclinação humana natural e boa, necessária para nosso bem-estar como animais racionais sociais. (Veja o capítulo 1 de By Man Shall His Blood Be Shed para uma defesa e explicação detalhadas da abordagem da lei natural sobre a punição.)

Portanto, punir malfeitores não é uma forma reprovável de violência – e de fato em certo sentido não é uma forma de violência afinal, dado que sua natureza como animais racionais sociais acarreta que esses malfeitores podem ser punidos pela prática do mal, de forma que puni-los não é agir contrário às suas naturezas. De fato, impedir autoridades legais de sequer infligir justas punições seria por si um tipo de "violência" no sentido que estamos considerando, porque seria contrário ao que a lei natural nos requer fazer.

Uma das implicações de tudo isso é que estas condenações hiper-abrangentes da violência são estúpidas e, de fato, imorais. Algumas violências são ruins, mas não toda violência, e algumas vezes ela pode até ser moralmente necessária.

(É reputado a Gandhi ter defendido uma ética de não-violência ao dizer que tomar olho por olho deixaria o mundo inteiro cego. Parece que ele jamais disse isso realmente, o que é algo bom para ele, porque isso é uma coisa bem estúpida de se dizer. O princípio da lex talionis não afirma que você deve infligir em qualquer um um dano proporcional ao que infligiu no oponente. Ele adota que devemos infligir a malfeitores, especificamente, dano proporcional ao que infligiram a inocentes. Mas autoridades legais que infligem dano sobre os culpados não são malfeitores, portanto uma aplicação consistente do princípio da lex talionis não implica que as autoridades devam ser atacadas também. Daí, se a citação pseudo-gandhiana fosse refraseada de maneira a não ter como alvo uma caricatura, ela diria algo como "tomar olho por olho cegaria todos que injustamente tiraram ambos os olhos de outrem". Ou, dado que a maioria dos defensores da lex talionis não pensam que literalmente arrancar olhos é uma boa ideia considerando todas as coisas, uma paráfrase melhor seria "infligir dano proporcional a malfeitores deixaria malfeitores proporcionalmente machucados". Mas então a resposta óbvia a este adágio pseudo-gandhiano seria "Sim, este é o ponto".)

O que foi dito também lança uma luz sobre por que a tortura é moralmente objecionável. O problema com a tortura não é que ela envolva infligir dor ou algo desagradável. Uma criança pode merecer palmadas ou a perda de algum privilégio, e um criminoso pode merecer coisa bem pior, e infligir tais punições não é errado. O problema com a tortura também não é que ela envolva coerção da vontade. Quando um genitor ameaça um filho com punição, ou um policial ameaça atirar em um ladrão de banco se ele não baixar a arma, a vontade é coagida, mas de forma inteiramente justificada.

O problema da tortura é que ela envolve a subversão completa do intelecto e da vontade como um todo, essencialmente tentando reduzir o animal racional a um não-racional. Desta maneira, é contrária à natureza da vítima de uma forma que a mera imposição de dor ou de coerção não é. (Eu sugeriria tentativamente que ela resume-se à perversão de uma capacidade. Afinal essencialmente é uma questão de tentar dobrar o intelecto e vontade de alguém para um certo resultado por meio de um método que subverte o funcionamento próprio do intelecto e da vontade.)

Mais uma implicação da análise da violência dada acima é que responder a um oponente que almeja travar contigo uma via racional com vituperação, ataques ad hominem, intimidação, e coisas do gênero é também um tipo moralmente objecionável de violência. Afinal ela envolve agir contrariamente à natureza racional da pessoa.

Note que não estou afirmando que o engajamento polêmico com qualquer oponente seja necessariamente errado. Como eu argumentei diversas vezes ao longo dos anos (e.g. aqui, aqui, aqui), pode ser legítimo responder a um oponente com aspereza polêmica – em particular, quando o oponente é ele próprio intransigente ou está disparando vitupérios e coisas do gênero. Não existe inconsistência alguma em responder com grosseria retórica àqueles que são retoricamente grosseiros, não mais que em um policial atirando de volta a assaltantes de banco que atiraram primeiro. Em ambos os casos a autodefesa ou a defesa de outrem pode justificar uma resposta severa.

O que estou falando é do caso em que seu oponente não está sendo vituperativo, mas está tentando te apresentar argumentos racionais, e em vez de responder com gentileza você dispara abusos sobre ele, atribui motivações más, zomba dele, e de outras maneiras recusa-se a tratá-lo como um par agente racional. Este é um tipo de violência no sentido que eu descrevi, na media em que o que é por natureza bom para ele, para você, e para a comunidade de animais racionais sociais ao qual ambos pertencem é que vocês abordem um ao outro no nível da razão, e vocês estão agindo de maneira contrária à razão.

Agora, caixas de comentários, fios de discussão de Facebook, trilhas de Twitter e outros semelhantes são por vezes fossos de violência neste sentido da palavra. Em muitas delas, argumentos racionais, quando recebem alguma voz que seja, encontram com pouco mais que atribuições de maus motivos e outros ataques ad hominem, zombaria, e outras formas de sofisma. A ironia é que frequentemente precisamente aqueles que mais ruidosamente professam ser racionais e não-violentos são os mais propensos a este tipo de violência verbal. Por exemplo, os mais convictos oponentes da pena capital e outros defensores da não-violência geralmente evidenciam uma pavorosa incapacidade de construir argumentos racionais, controlar suas emoções, ou abster-se de acumular abusos sobre aqueles que deles discordam. Neo-ateus e proponentes de outras formas de pseudo-racionalismo auto-congratulatório são geralmente culpados da mesma coisa.

Mais ironia pode ser vista naqueles inclinados a acusar os outros de "micro-agressões". Se alguém calmamente tenta dar um argumento racional a alguma conclusão, mesmo uma politicamente incorreta, isto é precisamente o oposto de "agressão" ou violência, porque é um apelo à razão. E se alguém tenta eliminar o debate racional por causa de sentimentos feridos, isto é um tipo de agressão ou violência, precisamente porque é contrário à razão.

Então há a ironia daqueles ostensivamente comprometidos com a paz e a dignidade humana cujas táticas favoritas são acossar publicamente os que deles discordam, impedi-los de falar, agitar linchamento, e outras formas de perturbar a lei e a ordem que são uma precondição do discurso calmo e racional.

Não existe mais clara manifestação de respeito pela dignidade humana de uma pessoa com quem discordamos do que raciocinar com ela - e nenhum insulto mais claro à essa dignidade do que tentar ganhar no grito, intimidá-la ou de outras formas tratá-la como algo incapaz ou indigna de um embate racional. Tais são os tempos orwellianos em que vivemos nos quais aqueles que mais ruidosamente alegam ser contra a violência são também os mais propensos a recorrer à mesma.


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Título Violence in word and action
Autor Edward Feser
Link http://edwardfeser.blogspot.com/2018/10/violence-in-word-and-action.html
Arquivo http://archive.is

Created: 2018-11-11 dom 23:43

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"Pondo a Natureza no Pelourinho" [Edward Feser]

Pondo a Natureza no Pelourinho

Pondo a Natureza no Pelourinho

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O que é que distingue o método científico inaugurado por Bacon, Galileu, Descartes & CIA. da ciência dos medievais? Uma resposta comum é que os modernos exigiam evidência empírica, ao passo que os medievais se contentavam com apelos à autoridade de Aristóteles. A famosa história sobre os críticos escolásticos de Galileu recusando-se a olhar pelo telescópio supostamente serve para ilustrar esta diferença de atitudes.

O problema com esta resposta, é claro, é que ela é falsa. Por um lado, a história do telescópio é (assim como muitas outras coisas que todo mundo "sabe" sobre os escolásticos e o caso Galileu) uma lenda. Por outro, parte da razão pela qual a posição de Galileu encontrou resistência foi precisamente porque existe um tanto de questões no qual esta posição parecia conflitar com a evidência empírica. (Por exemplo, a teoria copernicana predizia que Vênus deveria em certos momentos aparecer com seis vezes o tamanho que apareceria outras vezes, mas inicialmente a evidência empírica parecia não confirmar isto, até serem desenvolvidos telescópios que podiam detectar a diferença; a paralaxe estelar prevista não recebeu confirmação empírica por um longo tempo; e assim por diante.)

Em seguida há o fato que os medievais simplesmente não eram de forma alguma hostis à ideia de que a evidência empírica é a fundação do conhecimento; pelo contrário, era um slogan escolástico padrão o "não há nada no intelecto que não haja primeiro no sentidos". De fato, Bacon considerava seus predecessores escolásticos como se algo por demais ávidos em acreditar na evidência dos sentidos. O primeiro dos "Ídolos da Mente" que ele famosamente critica, a saber os "Ídolos da Tribo", incluía uma tendência em tomar os vereditos da experiência sensória como fato. Na visão de Bacon, os sentidos podem ser enganados com muita facilidade, e precisam ser corrigidos controlando cuidadosamente as condições de observação e desenvolvendo instrumentos científicos. E em geral os primeiros modernos tratavam muito do que os sentidos nos dizem sobre o mundo natural – tais como o que eles nos dizem sobre qualidades secundárias como cor e temperatura - como falsos.

Então, simplesmente não é o caso que a diferença entre os medievais e os primeiros modernos era que estes últimos eram mais inclinados a confiar na evidência empírica. Pelo contrário, há um sentido em que este é precisamente o oposto da verdade.

Acerca do que interessa à evidência empírica, a real diferença, para hiper-simplificar, pode ser posta como se segue. Tanto os medievais quanto os modernos tratavam a experiência sensorial como testemunha crucial para a verdade acerca do mundo natural. Mas enquanto os medievais a tratavam mais ou menos como uma testemunha amigável, os modernos a tratavam mais ou menos como uma testemunha hostil. Você pode, de ambos os tipos de testemunha, derivar a verdade. Mas os métodos serão diferentes.

Consequentemente, uma testemunha amigável pode ser mais ou menos perguntada diretamente acerca da informação que você quer. Isto não significa que ela não precise eventualmente ser estimulada a responder. Mesmo que ela seja honesta, ela pode estar envergonhada ou relutante em divulgar algo embaraçoso, ou apenas não seja muito bem articulada. Isso também não significa que tudo que ela diz deve ser tomado em seu valor de face. Ela pode estar esquecida ou confusa ou apenas enganada agora e de novo. Uma testemunha hostil, em contraste, apesar de ter a informação que você quer, não pode ser perguntada diretamente com confiança. Mesmo que seja articulada, tenha uma memória perfeita, &c, ela pode simplesmente recusar-se a responder, ou pode persistentemente tergiversar, ou pode arrojadamente mentir séria e repetidamente. Portanto, ela pode ter que ser ludibriada para te entregar a informação que você quer, como o personagem de Jack Nicholson em Questão de Honra 1. Ou você pode ser tentado a ameaçá-la e espancá-la, como um daqueles tiras em Los Angeles - Cidade Proibida 2 faria. Então você pode pensar que o cientista aristotélico medieval tenha uma conversação com a natureza, o cientista baconiano moderno tortura 3 a natureza. Daí a notória fala baconiana sobre colocar a natureza no pelourinho, torturá-la para obter seus segredos &c.

Claro, isso é melodramático. E, para sermos justos, o próprio Bacon não parece ter posto as coisas dessa maneira comumente atribuída a ele (i.e. a parte acerca de tortura e pelourinho). No mais tudo igual, os medievais e modernos discordam sobre o grau no qual o mundo da experiência ordinária e o mundo que a ciência revela – o que Wilfrid Sellars chamou de "imagem manifesta" e "imagem científica" – correspondem. Para o aristotélico, a filosofia e a ciência estão largamente em harmonia com o senso comum e a experiência ordinária. Para esclarecer, eles vão a níveis mais profundos da realidade, e corrigem o senso comum e a experiência ordinária ao longo das arestas, mas não descartam completamente o senso comum e a experiência ordinária. Para os modernos, em contraste, a filosofia e a ciência são propensas a radicalmente conflitar com o senso comum e a experiência ordinária, e podem de fato até mesmo descartá-la completamente.

(Esta não é uma diferença concernente a se aceitar os resultados da ciência moderna, a propósito. É uma diferença sobre como interpretar tais resultados. Por exemplo, é uma diferença sobre se tratamos a ciência moderna como fornecendo uma descrição correta mas meramente parcial da realidade – uma descrição que precisa ser suplementada por e inserida em uma metafísica e filosofia da natureza aristotélicas – ou sobre se a tratamos como uma descrição exaustiva da natureza, e uma metafísica completa por si só.)

A atitude dos primeiros modernos de tratar a natureza como uma testemunha hostil – de pensar que a verdade sobre a natureza é largamente contrária ao que a experiência ordinária indicaria – é uma das fontes da tendência moderna de supor que "as coisas nunca são o que parecem", que ideias tradicionais são tipicamente meros preconceitos, que autoridades e histórias oficiais de todo tipo precisam ser "desmascaradas", e assim por diante. Michael Levin chamou isso de "falácia do leite desnatado", e eu tenho regularmente notado algumas das suas consequências sociais e morais (e.g. aqui, aqui, aqui). Mas isso é meramente um subproduto de uma revolução metafísica e epistemológica mais profunda.


1 META

Table 1: META
Título Putting nature on the rack
Autor Edward Feser
Link https://edwardfeser.blogspot.com/2016/03/putting-nature-on-rack.html
Arquivo http://archive.is/jFnw8

Footnotes:

1

A Few Good Men, filme de 1992, com Cruise e Nicholson. O personagem, acaso queira saber, se chama Nathan Jessup, coronel da Marinha.

2

L. A. Confidential, filme policial de 1997, baseado no livro de James Ellroy.

3

No original, waterboard. Refere-se a uma simulação de afogamento, em que a pessoa é amarrada a uma cama inclinada, com a cabeça direcionada para o chão. Em intervalos regulares de acordo com a respiração, o torturado tem o rosto molhado e água lançada nas vias respiratórias.

Created: 2018-11-11 dom 23:46

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sábado, 6 de janeiro de 2018

"Hume, Ciência e Religião" [Edward Feser]

Hume, Ciência e Religião

Hume, Ciência e Religião

Suponha que você compre a famosa análise da causação de Hume, e portanto negue que possamos ter qualquer conhecimento de conexões causais objetivas na natureza (seja porque não há nenhuma - a interpretação tradicional "verificacionista" de Hume - ou porque elas existem mas a mente não pode genuinamente conhecê-las ou entendê-las - a nova interpretação "realista cética"). Você não deveria comprá-la (por razões estabelecidas em The Last Superstition), mas suponha que sim. É entendível por que, em tal caso, você rejeitaria argumentos de Causa Primeira para a existência de Deus. Se não podemos ter qualquer conhecimento de conexões objetivas causais entre as coisas, então não podemos ter conhecimento de uma Causa Primeira.

Mas como, neste caso, você não rejeitaria a ciência moderna também? O teísmo e a ciência natural - a qual parece estar no negócio de descobrir conexões causais objetivas entre os fenômenos - não permanecem ou caem juntos? Uma maneira de contornar isso seria adotando alguma forma de interpretação não-realista da ciência. Você poderia tomar uma visão instrumentalista de que as teorias científicas não nos contam realmente qualquer coisa sobre a natureza das coisas, mas são meras ferramentas úteis para predizer as experiências.

Um problema com esta resposta é que as interpretações não-realistas da ciência são simplesmente implausíveis. Como Hilary Putnam famosamente apontou, o realismo é "a única filosofia que não torna o sucesso da ciência um milagre". Outro problema é que ela discutivelmente não aborda realmente o coração da objeção de qualquer forma, mas apenas retrocede o problema um passo. Pois se você está por tratar teorias científicas como ferramentas para predizer experiências, então parece que você está pressupondo que pelo menos uma coisa no mundo - a própria mente humana experimentadora, ou a sua mente que seja - manifesta regularidades causais que podem ser capturadas por teorias científicas. Mesmo como humeano você faria isso; por exemplo, qua humeano você suporia que as ideias vem, e só podem vir, de impressões antecedentes; que elas são combinadas apenas de acordo com os três princípios humeanos de associação; e assim por diante. Estas parecem ser precisamente regularidades causais, cuja existência garante que existe um conjunto ordenado de experiências para uma ciência instrumental descrever e predizer.

Claro, isto assenta-se pobremente com a própria análise de Hume sobre causação Se (como alega Hume) qualquer efeito pode em princípio seguir de qualquer causa ou de nenhuma causa afinal, de onde ele sai nos falando que toda ideia (à parte do famoso "tom perdido de azul", de qualquer forma) deve derivar de uma impressão antecedente? Se não há "conexões objetivas" necessárias entre causas e efeitos- sendo a própria ideia de conexão necessária um mera projeção da expectativa subjetiva da mente de A na ocasião de B, uma propensão produzida por observadas conjunções constantes de A e B no passado - então por que exatamente as ideias deveriam comportar-se somente de acordo com os princípios da associação?De fato, mesmo a noção de uma "propensão" espera um tal-e-tal efeito, e desta propensão ser "produzida" na mente por constante conjunção, são elas mesmas noções causais. Assim Hume quer dizer que todas essas alegações sobre a mente e sobre causação são elas mesmas meras projeções baseadas em nada além de regularidades observadas na ordem de nossas impressões e ideias, e não têm validade objetiva? Presumivelmente não; de fato, a própria ideia aparenta ser não apenas implausível, mas definitivamente incoerente. Ao mesmo tempo, forçando consistentemente ao longo de um ceticismo humeano radical sobre causação aparentemente exigiria aplicar a análise de Hume sobre causação às próprias alegações de Hume sobre os mecanismos que governam a mente. E enquanto isto certamente minaria argumentos de Causa Primeira, isto também minaria a ciência - precisamente porque minaria qualquer alegação sobre o conhecimento, incluindo a própria teoria de Hume. A leitura tradicional "cética radical" de Hume nos deixa com uma serpente que devora a própria cauda.

Uma estratégia mais promissora para o humeano que quer aceitar a ciência enquanto rejeita a teologia natural seria a de tomar uma linha mais suave "neo-humeana" ou de "Hume como realista cético", e negar que a análise humeana de causação realmente acarrete tomar uma abordagem não-realista para a ciência em geral ou causação em particular. Pode-se adotar que a posição de Hume meramente acarreta que não podemos conhecer ou entender conexões causais estritas, mas não que tais conexões não existam. A ideia seria então que a visão de Hume de que nossa crença em relações causais objetivas é impenetrável à crítica racional de qualquer maneira, dado que não se pode fazer nada além de aderir a ela dada nossa natureza, o que também acarreta que a ciência embasada nesta crença é algo que dificilmente podemos consistentemente colocar em dúvida. Não obstante, se causação pode de fato ter uma base objetiva mesmo que não possamos saber ou entender, assim também seria a ciência, Portanto nós não precisamos ignorar a ciência, mais do que a causação, como uma ilusão. Nós podemos ser incapazes ou de justificá-la (racionalmente falando) ou de duvidá-la (psicologicamente falando), mas disto não segue que um humeano tem que tratar nossa crença nela como ou sendo falsa ou sendo estritamente sem sentido. (Eu não estou alegando que tudo isso seja plausível ou mesmo coerente considerando tudo o mais, seja como uma interpretação de Hume ou como uma posição defensável por seus próprios méritos. O ponto é apenas que isto é uma posição mais promissora para um humeano adotar se ele quer rejeitar argumentos de Causa Primeira mas aceitar a ciência.)

Ok, então aonde a rejeição aos argumentos de Causa Primeira se encaixam? Por que eles não sobrevivem a um humeanismo "realista cético" menos radical, a exemplo da ciência? Se a mera possibilidade de causas objetivas (ainda que não conhecíveis) unida à nossa fé animal nelas tira a ciência fora do armário, por que não a teologia natural? A resposta parece ser que na visão do humeano, e de fato na do próprio Hume, apesar de não podermos conhecer ou entender as conexões causais objetivas, nós podemos formular critérios para determinar que relações causais propostas em particular são mais provavelmente existentes, se é que realmente existem quaisquer relações causais afinal. E enquanto as teorias consagradas em "nossa melhor ciência" conformam-se a este critério, argumentos para uma Causa Primeira não.

Deste modo chegamos àquela longa e desonesta (ou no mínimo lamentavelmente ignorante) tradição cética de tratar os argumentos tradicionais da teologia natural como se fossem essencialmente pouco mais que hipóteses científicas empíricas de segunda classe, exercícios débeis de raciocínio de "Deus das Lacunas" (uma tradição auxiliada e confortadas por William Paley e seus sucessores). E desta forma o humeano pode ter seu bolo cientificista e comê-lo também. Afinal a ciência é apenas uma extensão daquilo que nada se pode além de crer na "vida comum", fora do estudo do filósofo. Portanto, não obstante ser racionalmente injustificável, ciência está OK; e teologia natural também estaria OK se apenas fosse boa ciência. Nesta visão, não seria a teoria de causação de Hume per se que mina argumentos de Causa Primeira. Em vez disso, a alegação poderia ser que considerações de parcimônia, adequação empírica, &c tornam o teísmo uma "hipótese menos provável" que o ateísmo.

O problema é que, como eu mostrei em The Last Superstition (e dificilmente eu sou a primeira pessoa a mostrar isso), os argumentos clássicos de Causa Primeira não são argumentos empíricos quasi-científicos de "Deus das Lacunas", mas em vez disso eles intendem uma demonstração metafísica. E a metafísica relevante é a do tipo aristotélico, que alega precisamente não fazer nada além de estender o que nós mesmos já tomamos por conhecido na vida comum. Em particular, argumentos aristotélico-tomistas de Causa Primeira intendem mostrar que a existência de uma Causa Primeira é uma precondição necessária de existir qualquer coisa como o que o senso comum entende como "causação" em primeiro lugar. Então, se para o humeano (ou "neo-humeano") nossas crenças de "vida comum" sobre causação (a) podem bem estar corretas, e (b) são legitimamente adotadas por nós apesar de seu estatuto racionalmente injustificável, por que não podemos também aceitar a conclusão de tais argumentos de Causa Primeira? Voltamos mais uma vez a perguntar: se a ciência está OK, por que não a teologia natural?

O humeano pode neste ponto objetar que tais argumentos ainda vão além do que um apelo à "vida comum" poderia ser capaz de justificar, na medida que eles supõem (a) uma metodologia metafísica a priori, e (b) que nós tenhamos uma compreensão transparente das essências das coisas (e em particular de seus poderes causais). Mas enquanto tal objeção pode ter força contra uma teologia natural racionalista do tipo praticada por Leibniz - eu não estou dizendo que realmente tenha, é bom que saiba, apenas estou concedendo isso pelo bem do argumento - ela não tem força alguma contra a teologia natural aristotélico-tomista. Afinal o A-T não argumenta a priori, e não adota que tenhamos em geral um conhecimento completo e transparente das essências; como o empirista, o metafísico A-T insiste que o conhecimento das essências reais deve ser a posteriori, e reconhece limites em nosso conhecimento das essências das coisas. Onde o A-T difere do empirismo é na recusa em colapsar a distinção entre intelecto e imaginação, entre conceitos e imagens mentais - o pecado cardeal do empirismo moderno, do qual todos os seus muitos outros erros seguem. Portanto A-T também rejeita o nominalismo que acompanha este erro principal (ou o embasa, dependendo de como você olha), e rejeita o ceticismo radical acerca de causação, substância, essência etc. que segue em virar-se para o imagismo e o nominalismo.

Por esta razão, enquanto existe uma tensão entre o senso comum e a filosofia mesmo numa visão neo-humeana de causação - afinal, dada a epistemologia e metafísica humeanas, como pode nossa vida comum ser sequer possivelmente verdadeira, dado que conexões causais tornam-se não meramente não-conhecíveis mas também ininteligíveis? -, não existe tal tensão no A-T. A-T realmente é o que P. F. Strawson famosamente chamou de "metafísica descritiva", que deixa o senso comum intacto, enquanto o humeanismo é "revisionista" em seu núcleo, minando exaustivamente o senso comum implicitamente mesmo quando fala hipocritamente da "vida comum". Um "realista cético" humeano tem, quando fora de seu estudo, simular completa ignorância do que aprendeu. Mesmo a mera possibilidade de que o senso comum possa estar correto, a própria inteligibilidade da causação, é descartada quando sua metodologia é tomada seriamente. Nenhuma pretensão do tipo seria necessária no A-T mesmo que o filósofo A-T tenha entretido dúvidas sobre se conhecimento genuíno é realmente possível, dado que não há nada em sua posição (como há na posição humeana) que levanta dúvidas da própria inteligibilidade, e não apenas a conhecibilidade, das causas.

Se realmente vamos levar a "vida comum" a sério, então, temos que levar a sério a metafísica que a torna minimamente inteligível, a saber algo como a metafísica A-T. E isto significa aceitar (assumindo que de outra forma eles são inobjetáveis, como eu argumento em TLS) os argumentos de Causa Primeira que dela segue. Reciprocamente, rejeitar estes argumentos implica rejeitar toda a ideia de que o senso comum está correto mesmo sobre a própria possibilidade de conexões causais objetivas - o que significa por sua vez rejeitar mesmo uma justificação pela "fé animal" de nosso comprometimento com a ciência.

E isto revolve mais uma vez na questão com a qual começamos: Como pode um humeano consistentemente aceitar a ciência e ainda assim rejeitar argumentos de Causa Primeira para a existência de Deus? A resposta inevitável parece ser: não, ele não pode. Até onde um humeano consistente se preocupa, ciência e teísmo permanecem ou caem juntos. Mas daí então não existe boa razão para ser humeano para princípio de conversa, e muitas boas razões para não ser um. Então talvez a questão seja duvidosa.


META
Autor Edward Feser
Link Original http://edwardfeser.blogspot.com.br/2009/06/hume-science-and-religion.html
Link Arquivado http://archive.is/8nFPD